Por Renato M.E. Sabbatini, PhD *
Atualmente, até mesmo um estudante de escola secundária menos informado sabe que muitas funções do cérebro são desempenhadas por determinadas estruturas e não por outras.
Atualmente, até mesmo um estudante de escola secundária menos informado sabe que muitas funções do cérebro são desempenhadas por determinadas estruturas e não por outras.
Por exemplo, a parte externa do cérebro, chamada córtex, tem regiões que são responsáveis por diferentes funções, tais como a percepção da visão, o controle do movimento e da fala, assim como as faculdades mentais superiores (cognição, visão, planejamento, raciocínio, etc). Esta doutrina, que tem sido comprovada muitas vezes na era moderna por equipamentos, apoiados por computadores, que possibilitam a visualização precisa de uma determinada função quando ela está sendo realizada pelo cérebro, é chamada de localizacionismo cerebral. Mas isto não era assim nos anos finais do século XVIII, o século do iluminismo. O conhecimento a respeito do cérebro era pequeno e dominado por especulações não científicas. A experimentação objetiva com animais ainda era rara e um dos mais poderosos métodos para inferir a função cerebral que é a observação de pessoas com danos neurológicos devido a lesões localizadas do cérebro, tais como tumores, ainda estava em seus estágios iniciais.
A fonte principal de conhecimento sobre o cérebro eram as dissecções feitas em cadáveres de animais e seres humanos. A localização da função no cérebro podia somente ser imaginada a partir do fato de que existiam muitas estruturas anatômicas de formato diferente, de modo que talvez elas pudessem ser responsáveis por diferentes faculdades mentais.
Em meio a este cenário desencorajador, surge o médico austríaco Franz Joseph Gall (1758-1828), que foi o pioneiro da noção de que diferentes funções mentais são realmente localizadas em diferentes partes do cérebro.
Isto aconteceu há exatamente 200 anos atrás, em 1796! Como nós veremos, ele estava certo nesta noção, mas totalmente errado na maneira como isso é conseguido pelo cérebro. Como resultado, ele produziu a frenologia (de phrenos = mente e logos = estudo), a primeira teoria completa de localizacionismo cerebral. Esta foi certamente uma grande vitória. Entretanto a frenologia mais tarde foi descartada e punida pelo estabelecimento científico como uma forma crua de charlatanismo e pseudociência, mas a sua importância histórica permanece, e esta é a razão para o presente artigo.
A Teoria por trás da Frenologia
Gall, em seu notável trabalho "A anatomia e Fisiologia do Sistema Nervoso em Geral e do Cérebro em Particular", colocou os princípios no qual ele baseava a sua doutrina de frenologia.
Primeiro, ele acreditava que as faculdades morais e intelectuais do homem são inatas e que sua manifestação depende da organização do cérebro, o qual ele considerava ser o órgão responsável por todas as propensões, sentimento e faculdades.
Segundo, Gall propôs que o cérebro é composto de muitos sub-órgãos particulares, cada um deles relacionado ou responsável por uma determinada faculdade mental. Ele propôs também que o desenvolvimento relativo das faculdades mentais em um indivíduo levaria a um crescimento ou desenvolvimento maior de sub-órgãos responsáveis por eles.
Finalmente, Gall propôs que a forma externa do crânio reflete a forma interna do cérebro e que o desenvolvimento relativo de seus órgãos causam mudanças na forma do crânio, que então poderia ser usadas para diagnosticar faculdades mentais particulares de um dado indivíduo, ao se fazer a análise adequada.
De fato, a teoria de Gall foi construída ao revés do que afirmamos acima. Ele primeiro realizou observações numerosas e cuidadosas e fez muitas medidas experimentais em crânios de seus parentes, amigos e estudantes. Posteriormente, com a ajuda de seus associados, ele fez a mesma coisa com muitas pessoas com diferentes caracteristicas de personalidade. Gall pensava que ele conseguia correlacionar certas faculdades mentais particulares a elevações e depressões na superfície do crânio, suas formas exteriores e dimensões relativas. Ele poderou então, sobre a possibilidade de que essas marcas externas poderiam ser causadas pelo crescimento de estruturas cerebrais internas e que este crescimento estaria relacionado ao desenvolvimento de faculdades mentais associadas. Assim, ele conseguiu produzir uma teoria completa e extensa para apoiar o seu trabalho e para usá-lo para aplicações práticas nas ciências mentais, por meio de mapas topológicos detalhados.
O colaborador mais importante de Gall foi Johann Spurzheim (1776-1832), que mais tarde o ajudou a ampliar o assim chamado modelo frenológico e disseminá-lo na Europa e EUA.
O Destino da Frenologia
A estrutura lógica e fácil de aprender da teoria frenológica rapidamente capturou a imaginação de milhares de seguidores. A precisão e grau de segurança científica destes termos e mapas fizeram grande progresso no tempo em que os principais inimigos do racionalismo eram a religião, a subjetividade e a autocracia. Devido a isto, Gall ganhou o apoio, assim como as mentes, de muitas figuras científicas e políticas importantes em muitas partes do mundo. Ele era o seu campeão, em um terreno dominado pelos ensinamentos de filósofos religiosos.
Eventualmente, a frenologia foi atacada pela ciência oficial, que não pôde corroborar a teoria de Gall com achados concretos. Já em 1808, o Instituto da França reuniu um comitê de sábios liderado por Cuvier, que declarou que a frenologia não era confiável (alguns historiadores suspeitam que eles também não tinham evidências científicas para apoiar esta informação, e que a conclusão foi forçada por Napoleão Bonaparte, que estava furioso porque a interpretação de Gall sobre seu crânio tinha "esquecido" algumas qualidades nobres que ele pensava que tinha...).
A frenologia foi comparada a outras formas de charlatanismo, principalmente devido aos abusos nas mãos de empresários comerciais suspeitos. Sua morte aconteceu nos últimos 25 anos do século IXX. Entretanto, ela deu origem a muitos outros ramos científicos e pseudocientíficos baseados na análise quantitativa de características faciais e craniais, tais como a craniologia, antropometria e psicognomia, muitos dos quais sobreviveram bem até em eras modernas. Surpreendentemente, ainda existem seguidores e crentes da frenologia entre nós.
REFERÊNCIAS
SABBATINI, Renato M. E. Cérebro & Mente. [S.l.: s.n.], 1997. [on-line]. Disponível em: <http://www.cerebromente.org.br/n01/frenolog/frenologia_port.htm>. Acesso em: 27 abr. 2018.
* Renato M.E. Sabbatini é neurocientista e especialista em Infromática Biomédica, com doutorado pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado no Instituto de Psiquiatria Max Planck em Munique, na Alemanha. Atualmente, é diretor do Núcleo de Informática Biomédica da Unicamp e professor de Informática Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas, Brasil. Email: sabbatin@nib.unicamp.br
Centro de Informática Biomédica
Universidade Estadual de Campinas
Brasil
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